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Sobre o que há - W. V. O. Quine | Metafísica | Filosofia UFSM - 2022/2
Quine. W.V.O. “Sobre o que há”. Em CIVITA, Victor (Ed.). Ensaios. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1975. pp. 221 - 235. Texto completo disponível aqui.
Nesta disciplina de Metafísica, você deve ter estudado toda a sorte de questões caracterizadas como fundamentais para entender a realidade. Essas questões versam sobre diversas características do mundo que tendem a ser bastante gerais e abstratas: tempo, espaço, relações, mente, substâncias, apenas para citar alguns.
Muitas vezes, esses problemas tomam a forma do que podemos chamar de “perguntas existenciais”. Uma pergunta metafísica sobre o tempo poderia ser refraseada como “o tempo existe?” - ou ainda “o passado e o futuro existem?”, “existe alguma diferença fundamental entre passado, presente e futuro?”, entre outras formulações.
De fato, as perguntas existenciais constituem o pilar da metafísica desde os tempos de Parmênides e Heráclito até hoje. Isso se deve por que é tarefa da metafísica clarificar os nossos compromissos ontológicos, isto é, o que tomamos como existente ou inexistente. Nesse sentido, é extremamente importante que sejamos explícitos sobre o que siginifca assumir um compromisso ontológico, bem como quais critérios devemos adotar quando estamos defendendo o comprometimento com a existência de algumas entidades.
Em Sobre o que há, o filósofo norte-americano Willard Quine trata exatamente sobre essas questões. Nesse artigo, Quine não aborda diretamente alguma pergunta metafísica em específico (como “existem números?” ou “existe o tempo?”), mas ele analisa como se deve responder a essas perguntas existenciais. Em resumo, o principal problema que Quine aborda nesse texto é “o que há?”.
Pegasus existe? O paradoxo do não-ser
Como exemplo, o autor pergunta se devemos aceitar a existência da figura mitológica Pegasus. Logo de início, ele menciona três respostas a essa questão e as associa com ele mesmo e dois autores fictícios, McX e Wyman:
- Quine: Pegasus não existe;
- McX: Pegasus existe, mas apenas como uma ideia nas mentes humanas;
- Wyman: Pegasus existe, mas apenas como uma entidade possível. Ou seja, Pegasus é uma entidade existente mas não efetivada no mundo - isto é, não ocupa uma posição no espaço-tempo.
Sugestão: pare agora e leitura e pense um pouquinho. Com quem você concordaria, Quine, McX ou Wyman? Quais razões você pode oferecer para sustentar a sua tese? Como que um defensosr da tese contrária poderia argumentar contra a sua tese? Como você poderia responder a ele? Se você conseguiu responder a essas três questões, parabéns! Você fez filosofia.
Wyman e McX têm um forte argumento contra a tese de Quine. Segundo eles, é inconsistente negar a existência de qualquer entidade, pois o mero ato de mencioná-la implica que um comprometimento com a sua existência. Um paradoxo similar já aparece no diálogo Parmênides de Platão, mas a sua forma mais contemporânea tem a forma do seguinte argumento:
- P1. Apenas sentenças com sentido podem ser verdadeiras;
- P2. Em uma sentença com sentido, cada parte da sentença deve ter sentido;
- P3. Se um termo singular (p. ex., um nome) tem sentido, então ele denota, ou faz referência a alguma coisa; –> relação entre sentido e existência
- P4. Se “Pegasus” tem sentido, então ele denota alguma coisa;
- P5. Se “Pegasus” denota alguma coisa, então há alguma coisa a qual “Pegasus” se refere;
- C. Se “Pegasus” tem sentido, então a proposição “não há Pegasus” é falsa.
Se você quiser saber mais sobre o paradoxo do não-ser, recomendo o artigo (em inglês) Nonexistent objects da Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Como você pode ver, a conclusão do argumento acima é uma forma de negar a tese de Quine de que não há Pegasus, números, ou qualquer outra entidade cuja existência esteja sendo debatida. Como que Quine pode sair dessa? Será que temos mesmo que admitir a existência de qualuer entidade cujo nome tenha sentido? A resposta a isso está baseada na teoria das descrições definidas de Bertrand Russell.
O calvo rei da França - teoria das descrições definidas
Em filosofia da linguagem, Russell é especialmente conhecido por ter criado uma teoria que torna explícito o sentido de palavras e sentenças. Segundo ele, o sentido de uma sentença depende da análise semântica de cada um dos seus termos (conforme P2 acima). Assim, para a frase “o atual rei da França é careca”, os termos o
, atual rei da França
, é
e careca
são conectados na sentença da seguinte forma:
Perceba que nessa teoria, para que a expressão o atual rei da França
tenha sentido, não é necessário que nos comprometamos com a existência de tal rei. O mesmo serve para nomes como “Pégaso”, “Batman”, “elétron”, ou mesmo “Bertrand Russell” - nessa teoria, nomes são apenas formas abreviadas para descrições maiores de certos indivíduos. Poderíamos substituir “Batman” por uma expressão como a abaixo sem qualquer perda de sentido:
Por desvencilhar sentido de denotação, a teoria de Russell consegue negar P3 do paradoxo do não-ser e, com isso, desmontar a principal motivação de assumir compromissos ontológicos sobre Pégaso, Batman, entre outros. Com isso, McX e Wyman perderam o seu principal argumento contra Quine.
No entanto, concluir que a posição de Quine é consistente e livre de contradições não necessariamente implica que devemos aceitá-la. O fato de uma teoria ser consistente é o mínimo que se pode esperar dela - para que possamos aceitá-la, ela deve cumprir outros critérios. Quais parâmetros são esses? É disso que Quine trata a seguir.
O que há?
Vimos até agora que o paradoxo do não-ser é falho porque mistura o sentido de um nome com o comprometimento de que existe o objeto ao qual o nome se refere. Assim, é possível dizer que “Pégaso não existe” sem que incorramos em contradições. Mas ainda não avançamos muito no que diz respeito às duas perguntas que motivaram toda essa discussão, a saber:
- O que siginifca assumir um compromisso ontológico? P. ex., o que siginifca dizer “Pégaso existe”?
- Quais critérios devemos adotar quando estamos defendendo a existência de entidades? P.ex. por quais razões devemos dizer que Pégaso existe ou não?
A teria das descrições definidas de Russell já nos oferece algum indício de como responder a pergunta 1. Uma vez que essa teoria baseia o sentido de uma expressão em uma série de descrições em lógica de primeira ordem, podemos associar o compromisso ontológico de um objeto ao valor de uma variável nesse domínio de discurso.
Por exemplo, lembre que podemos explicitar o sentido de “Batman” da seguinte maneira:
\[Batman_x \iff Herói_x \land MoraEmGotham_x \land Órfão_x ...\]Agora podemos nos comprometer com a existência de Batman simplesmente ao introduzirmos uma variável, x
, tal que o valor de x
corresponda à descrição acima:
Em bom português, isso é o mesmo que dizer “há alguma coisa que é um herói, mora em Gotham, é órfão, etc”. Explicar existência com o valor de uma variável é, para Quine (p. 230), a resposta para pergunta 1 acima.
Por que há?
Falta agora responder a pergunta 2 - isto é, por que devemos nos comprometer com a existência de algumas entidades, e não outras? Quais critérios devemos usar para guiar essa decisão? Uma vez que questões ontológicas são traduzíveis em questões semânticas, Quine argumenta que a escolha de qual valor uma variável deve ter depende de qual esquema conceitual devemos aceitar. A decisão por qual esquema conceitual aceitar depende, em última instância, da sua simplicidade e da sua eficácia em sustentar explicações plausíveis.
Perceba que esses critérios (simplicidade e capacidade de sustentar explicações) estão dentre os mesmos parâmetros que cientistas usam para montar e escolher teorias. Por exemplo, astrônomos do século 19 criaram a hipótese de que a órbita de Mercúrio é afetada por um planeta ainda não observado, chamado de Vulcano. A postulação de um novo planeta era necessária na época porque a órbita de Mercúrio não seguia precisamente a melhor teoria da gravidade disponível na época - a teoria de Newton. Assim, os cientistas estavam em um dilema:
- Ou abandonavam a melhor teoria que tinham, porque ela não conciliava com os dados empíricos;
- Ou postulavam a existência de outro planeta cujos efeitos em Mercúrio eram compatíveis com os dados obervados e com a teoria Newtoniana.
Enquanto que a existência de Vulcano era uma explicação (quase) plausível na época, ela foi abandonada quando outra explicação mais simples surgiu: a teoria de Einstein sobre a gravidade. Esta não necessitava de nenhuma postulação de qualquer planeta adicional e, além disso, era perfeitamente compatível com as observações de Mercúrio. Por que a teoria de Einstein é mais simples e mais eficaz em criar explicações plausíveis, ela naturalmente foi, e ainda é, a mais aceita entre os cientistas.
Voltando para ontologia, a escolha de quais entidades devemos considerar como existentes segue o mesmo padrão. Segundo Quine, devemos admitir em nossas teorias apenas, e somente apenas, aquelas entidades que são indispensáveis para criar explicações plausíveis e simples sobre a realidade. Uma vez que essa finalidade é a mesma que guia as ciências empíricas, Quine argumenta que a nossa ontologia deve estar em concordância com o que as explicações das nossas melhores teorias científicas.
Metafísica de mecanismos
Problemas metafísicos
Tempo
- Tempo e extensão temporal - como um mecanismo permanece o mesmo ao longo do seu funcionamento no tempo?
- Eternalismo, presentismo e mereologia temporal
Relações
- Causação e constituição - qual é a diferença entre essas duas formas de relações?
- O fenômeno emerge de, ou é reduzido ao seu mecanismo?
Mereologia
- Qual é a relação entre partes e todo? Quais partes são necessárias?
- Mecanismos existem, ou apenas as suas partes?
- Qual a diferença entre um mecanismo e um simples agregado de partes?
Referências
Mecanismos
- Mecanismos na ciência, cap. VII de Filosofia da Ciência II;
- Filosofia da biologia, seção 3 (Função), cap. 8 de Problemas filosóficos
Tempo
- Capítulos 9 e 10 de Problemas de metafísica analítica
Relações
- Capítulo 1 de Problemas de metafísica analítica
Mereologia
- Capítulo 4 de Problemas de metafísica analítica